Hidroaviões em Lourenço Marques, passageiros e correios nos anos 30 (2/2)

Para concluir o primeiro artigo sobre hidroaviões em Lourenço Marques, actual Maputo.

Rotas mundiais da Imperial Airways
Vermelhos: pontos de partida e chegada da linha para a África do Sul 
Laranja: Lourenço Marques, por onde passava essa linha aérea
Azul: hidroavião usado na linha para a África do Sul 

A companhia de aviação inglesa Imperial Airways iniciou em 1932 uma rota pelo interior do continente africano de Croydon no Reino Unido para a Cidade do Cabo na África do Sul. Mais tarde decidiu passar a usar hidroaviões (que apesar de mais lentos eram mais confortáveis do que as aeronaves "terrestres", mas pode ter havido outras razões) para a África do Sul. Criou assim uma nova rota entre os portos de Southampton e Durban e que está marcada no mapa (mas como podemos ver aí mantiveram-se ligações "terrestres" no sul de África que eram operadas pela SAA/SAL, um dos mencionados "associates" regionais). O primeiro voo nesta nova rota foi a 7 de Junho de 1937 e depois de utilisar lagos e rios no norte/centro-leste de África, a partir de Mombaça seguia ao longo da costa do Índico. A Imperial fazia assim escala em Lourenço Marques (LM) com três voos por semana em cada sentido, o ascendente e o descendente.
Nessa altura a Imperial utilisava nas suas diferentes linhas 31 exemplares de hidroaviões Short Empire (S.23) que possuiu de 1936 a 1947, mas com intervalo para uso militar na 2a guerra mundial. Embora a guerra tenha começado em 1939 pode-se ver em baixo o relato dum voo em Janeiro de 1941 de LM para o que é presentemente Israel. Deduzo daí que a Imperial (integrada na BOAC desde 1939) não podendo voar para o Reino Unido deve-se ter adaptado às circunstâncias (aqui algumas fotos destes hidroaviões em Durban). 
No site voandoemmozambique (VeM) há uma notícia com foto dum Short Empire de nome CHALLENGER acidentado no casco ao navegar na baía do Lumbo em Moçambique num desses voos em Maio de 1939 e com falecimento de dois tripulantes. 
Se terá chegado a haver interrrupção total durante a 2a grande guerra não sei, mas depois dela os voos por LM podem ter recomeçado pois também no site VeM um leitor comentou lembrar-se de ver em 1948/49 hidroaviões na mesma baía do Lumbo e que viriam do Tanganica para a África do Sul. Como entretanto a TAP tinha aberto a ligação aérea com rota sobre o continente de Lisboa a Moçambique em 1947 e os hidroaviões iam-se tornando obsoletos, esses pioneiros da aeronáutica rápidamente devem ter-se desvanecido de LM e o facto é que não temos nenhuma foto deles na cidade.
Temos na wikepedia foto dum Short Empire (S.23) chamado CHALLENGER amarrado em Townsville na Australia, e não sei se será de antes ou depois do acidente do Lumbo (e se a NASA acreditasse em bruxas ...). 
Hidroavião Short Empire (S.23) CHALLENGER na Austrália
e que também passou por Lourenço Marques

Short Empire (S.23) era bastante diferente no que respeita ao flutuador da asa do anterior modelo S.8 e daí termos concluído que a foto aérea de LM tirada em 1937 mostrando um S.8 não o foi num voo regular da Imperial. O hidroavião de cima tinha só dois tubos a segurar o flutuador da asa enquanto que o da foto sobre LM tinha cinco. 
Em relação a LM pode-se ver um diário "very british" duma ilustre passageira dum dos primeiros voos de hidroavião da Imperial Airways para a África do Sul. Dá para entender que pouco mais passageiros que tripulantes haveria e que por isso eles teriam de pertencer à "upper class" económica (mas como veremos em baixo o transporte de correio devia ser uma receita fixa muito importante para o modelo de negócio). 
Edith Sherry partiu de Inglaterra a 20 de Agosto de 1937, passou pela Beira que detestou (sorry!), chegou e partiu de LM no dia 27 de manhã e chegou a Durban ao princípio da tarde desse dia. Aí apanhou a carreira regular da SAA para Johannesburg onde aterrou ao fim da tarde: Arrived Lourenco Marques 9.45 am. Went ashore for a few minutes. Offloaded the mail for the Rand. (Record mail) Left again 11.15 am. Weather perfect. Took on 5 passengers, 3 men and two ladies. 
Temos em baixo uma foto do hidroavião em que Edith Sherry voou para África e passou por LM. Comparando com o modelo Calcutta abordado na mensagem anterior, ambos tinham o casco e fuselagem totalmente em chapa de metal (sem madeiras) mas o modelo Empire que vemos em baixo (e vimos em cima) era monoplano em vez de biplano e tinha quatro em vez de três motores. 

Short Empire (S.23) "CASTOR" amarrado algures 
com duas embarcações para ligação ao cais acostadas ao aparelho.

Pormenor curioso os nomes de todos os Short Empire (S.23) da Imperial Airways começavam pela letra C.
O site www.aviastar.org que tem detalhes técnicos do aparelho tem também outras memórias dum voo em LM em 1941: Yoel Sher - I have wonderful memories from a five day flight as a child on both the oldest boat CANOPUS and the newest one CLEOPATRA in January 1941, from Lourenço-Marques (Maputo, today) to Tiberias (HoM: deve ser o bíblico Lago Tiberíades) . Part of the trip was a fantastic safari, flying probably not higher than one thousand feet. We "landed" wherever there was some water, and stayed overnught at Mombassa, on Victoria Lake at Kisume, on the Nile at Khartoum and then in Cairo. ..

Como Edith Sherry refere no seu diário, o voo na linha de África permitia o transporte oficial de correio para o Rand (Transvaal) e alguém disse que nessa altura o correio era mais importante que os passageiros. Coincidentemente o museu da SAA refere que correio - suponho que do Transvaal - era trazido nos seus voos para LM de modo a seguir com a Imperial para a Europa e Ásia. O correio aéreo internacional de Moçambique para a Europa a partir de 1937 também devia assim ir todo com a Imperial e o mesmo para o correio interno de longa distância pelo menos inicialmente. Lembro que a DETA só começou a voar em 1938 e que a primeira companhia de aviação moçambicana (aero colonial) não tinha sido contratada para transportar correio oficial.  
A história dos correios em Moçambique usando os hidroaviões da Imperial é contada no voandoemmoçambique em pormenor. Diz-se aí sobre três datas marcantes: 
7 Junho - 1º voo dos flying boats Londres/Durban; 
10 Junho - 1ª aceitação correspondência - sentido ascendente, de Moçambique para o exterior, pelos flying Boats; 
12 Jun - idem no sentido descendente.
Acho fantástico que haja na net vários exemplos de envelopes de Moçambique que seguiram nesses voos (marcados com "first flying boat service") e aparecendo por vezes à vendaver aqui por exemplo.
Carta enviada da Beira (com selo próprio da Companhia de Moçambique) 
para Inhambane, dois dos locais de amaragem da linha aérea na província

O envelope de cima foi carimbado a 9 de Junho de 1937 por isso terá sido transportado no primeiro dia do correio na linha da Imperial Airways. 
No envelope seguinte até podemos ver o nome do hidroavião que é o já conhecido CHALLENGER nos seus "very beginnings". 
Carta da Beira para ? carimbado a 10 de Junho de 1937, também primeiro dia

Concluindo, nestes dois artigos ficamos a conhecer principalmente as rotas da Imperial Airways para África no final dos anos 30 do século passado, como foi transportado nessa altura algum do correio interno e internacional de Moçambique e os modelos de hidroaviões usados na época e que passaram por LM. Espero que as eventuais fotos deles em LM que estarão ao fundo de algum baú venham entretanto à superfície.
Ver aqui a diferença entre hidroaviões: 1. "de casco" (flying boat), que eram barcos com asas como os da Imperial Airlines; 2. "de flutuadores" por baixo da carlinga = cabina, que eram aviões que aterravam na água.
Sobre os tempos heróicos dos hidroaviões ver aqui no blog riodosbonssinais um fantástico artigo sobre esquadrilha italiana (General Ítalo Balbo) em Bolama, antiga capital da Guiné Portuguesa.

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